terça-feira, 22 de janeiro de 2013

En'owkin: A tomada de decisões que levam em conta a sustentabilidade








O capítulo aqui apresentado foi retirado do livro Alfabetização Ecológica - Fritjof Capra e outros.

A influência de Jeannette Armstrong sobre o Centro de Eco-Alfabetização começou na verdade alguns anos antes da sua fundação, quando ela coordenou uma discussão interdisciplinar sobre "O Pensamento Indígena e a Transformação Social" , que Zenobia  Barlow havia promovido entre ativistas e pensadores indígenas e não indígenas. Armstrong é uma índia okanagan, nascida na Reserva Indígena de Penticton, na província canadense de British Columbia, onde viveu a maior parte de sua vida, Barlow recorda:

Jeannette C. Armstrong


Pela maneira com que ela se apresentou e envolveu as outras pessoas no sentido de aprofundar e mudar a sua forma de comunicação, eu sabia que ela tinha uma visão do mundo muito positiva e sobre a qual eu queria saber mais.
Ao se apresentar, ela falou sobre a sua herança e pelo que ela era responsável e desafiou todo mundo a assumir quem de fato era. " Não me venham falar dos livros que escreveram nem das proezas que realizaram", ela falou. "Digam-me quem eram seus avós"- pois era por meio dos avós dela, dos nomes que eles haviam dado a ela e dos significados desses nomes que ela havia entendido a sua responsabilidade de cuidar de outras pessoas e de todas as formas de vida. Ela queria saber de onde nós éramos, quem eram nossos antepassados, o que havíamos herdado e quais eram as nossas responsabilidades. Ela alterou a dinâmica desse encontro. Muitos dos participantes, pessoas famosas e escritores consagrados que se conheciam de longa data, apresentaram-se uns aos outros como se fosse pela primeira vez e começaram a se comunicar de uma maneira muito mais profunda.

No ano seguinte, Barlow e Armstrong  trabalharam juntas na organização de um encontro de quarenta lideranças intelectuais e ativistas, que seria uma adaptação de quatro dias de um conselho cerimonial okanagan
Zenobia Barlow
, facilitado por lideranças indígenas norte-americanas, com base no processo en'owkin de tomada de decisão que Armstrong descreve aqui. Ela chamou essa adaptação de "O Processo das Quatro Sociedades": os participantes foram divididos em "sociedades", representando respectivamente as perspectivas de Visão, Tradição/Lugar, Relação e Ação. ( O centro de Eco-Alfabetização continuou valendo-se dessas perspectivas para as suas tomadas de decisão e entendimento da dinâmica comunitária; elas também inspiraram a organização deste livro.) Desde 1992 que Armstrong e Barlow, juntamente com o marido de Armstrong, Marlow Sam, e a equipe do Centro, vêm dirigindo encontros anuais para apresentar os Processos das Quatro Sociedades, baseados nos princípios da sustentabilidade, para educadores, equipes escolares e projetos apoiados pelo Centro. Armstrong vem atuando como consultora do Centro, oferendo os seus critérios para o desenvolvimento de estratégias educacionais e referência conceitual da perspectiva de uma comunidade que vem se mantendo ha milênios na mesma terra e com os mesmos recursos.



    PARA O POVO OKANAGAN, assim como para todos os povos que se auto-sustentam com economias biorregionais, o entendimento que a comunidade como um todo precisa ter para poder alcançar a sustentabilidade resulta da sobrevivência grupal de milhares de anos. Os aspectos práticos da disposição de trabalhar em conjunto num sistema que envolve toda a comunidade surgiu claramente da necessidade de cooperar para sobreviver. Entretanto, para mim,  a palavra "cooperação" não basta para descrever a natureza orgânica pela qual os membros da comunidade continuam, bem além da necessidade, a cultivar os princípios que são fundamentais para cuidarem uns dos outros e das outras formas de vida.
   Os princípios desse processo me parecem simples, porque estão profundamente enraizados dentro de mim. Não consigo ver como a comunidade poderia atuar sem eles. Mas, tendo que explicitá-los para outras pessoas, eu acabei percebendo a complexidade e profundidade de seu significado. É também importante notar o que podemos esperar como resultado da prática desses princípios de vida.
 
 Primeiro, podemos esperar que cada pessoa reconheça o fato de que a realização plena do potencial humano de cada indivíduo, dotado de um dom único, é resultado do seu bem-estar físico, emocional, intelectual, e espiritual, e que esses quatro aspectos de existência estão sempre na dependência de coisas externas.
Segundo, cada pessoa é um elemento de um organismo transgeracional conhecido como família. Através desse organismo circula o vigoroso sangue da transferência cultural com a finalidade de garantir a maior probabilidade de bem-estar para cada geração.
Terceiro, o sistema familiar é o alicerce da manutenção a longo prazo de uma rede de vida chamada comunidade. Nas suas diversas configurações, essa rede propaga a sua força vital através de séculos e pelo espaço físico, adquirindo o conhecimento coletivo necessário para assegurar o bem-estar de todos.
Por fim, uma comunidade é um processo vivo que interage com o vasto e antigo corpo de padrões interligados de maneira complexa e operando em perfeita sintonia, chamado terra. A terra sustenta todas as formas de vida e seu esgotamento tem que ser evitado para que ela possa manter-se saudável e capaz de prover o sustento de uma geração após a outra. Muito do nosso sistema de crenças, que celebra a vida, evidencia-se pelo modo como o nosso "compartilhar com a comunidade" inclui os nossos "parentes que habitam a terra" - ou seja, as plantas, os peixes, os pássaros e os animais que a compartilham conosco.

 Essa ideia de comunidade, conforme entendida pelos meus ancestrais, compreendia uma visão holística complexa de interligação que nos impõe a responsabilidade por tudo de que fazemos parte. O nosso modo tradicional de tomar decisões, com base nessa visão, envolve um processo específico chamado en'owkin. Essa palavra provém da linguagem sofisticada do povo okanagan e originou-se de uma filosofia desenvolvida pra incentivar a cooperação voluntária. As três sílabas que formam essa palavra na língua okanagan invocam a imagem de um líquido sendo absorvido gota a gota pela cabeça (mente) - possibilitando que chegue ao entendimento por meio de um suave processo de integração.
 Tradicionalmente o povo okanagan recorria a esse processo quando a comunidade tinha que fazer uma escolha. Não estou afirmando que esse processo continua sendo praticado de maneira intacta, mas elementos dele continuam existindo e são passados de geração em geração.Afinal estamos há apenas duas gerações da colonização. Usamos continuamente esse processo de maneira informal em nossa comunidade e, em certas ocasiões, podemos adotá-lo de maneira formal.
 Quando a comunidade está diante de uma decisão, um dos membros mais velhos solicita às pessoas que participem do en'owkin, pedindo que cada uma delas contribua com informações sobre o assunto em questão. O que se segue não é tanto um debate como um processo de esclarecimento, que incorpora informações do maior número possível de pessoas, por mais irrelevantes, triviais ou controversas que possam parecer essa informações - uma vez que, no en'owkin, nada é descartado ou visto com preconceito.

 O processo é conduzido deliberadamente, num primeiro momento não para busca de solução. Antes, ele busca informações concreta, investigando como a decisão pode afetar as pessoas e coisas tanto a longo quanto a curto prazo. Embora seja costume dar a oportunidade de falar às pessoas com capacidade de análise ou conhecimentos especiais e também as que representam indivíduos e famílias, qualquer um é convidado a se pronunciar, desde que seja para acrescentar novas informações ou conhecimentos.

A etapa seguinte do processo desafia o grupo a sugerir possíveis soluções, sem esquecer de nenhum dos interesses manifestados pelos outros. O desafio normalmente assume a forma de perguntas colocadas aos "anciões", às "mães", aos "pais" e aos "jovens".
Aqui, a palavra "anciões" (ou "representantes da terra") refere-se àqueles que concordam em defender tradições e a nossa ligação com a terra. A comunidade busca a visão espiritual dos anciões como uma força diretriz. "Ancião" não quer dizer necessariamente velho do ponto de vista cronológico. Eu fui designada como um dos anciões quando ainda era bem jovem e tive a sorte de ser criada e treinada como uma representante da terra na minha comunidade. Eu não me considero nenhuma especialista, mas independente da questão que esteja sendo decidida, é minha responsabilidade me levantar e perguntar de que maneira a decisão vai afetar na terra. Como ela vai afetar os nossos alimentos? Como ela vai afetar a nossa água? Se a terra for afetada, qual será o impacto sobre os meus filhos, netos e bisnetos?
 "Mães" refere-se às pessoas que têm os mesmos interesses com respeito ao bem-estar da família e das relações dentro da comunidade. A responsabilidade das mães (que podem ser homens) é considerar de que maneira uma decisão vai afetar os diversos grupos dentro da comunidade: crianças, mães, trabalhadores, etc. A comunidade espera obter das mães conselhos sábios sobre política e sistemas que funcionem com base nas relações humanas.
 "Pais" refere-se àqueles que pensam da mesma maneira com respeito às coisas necessárias para segurança, o sustento e a moradia. Normalmente, a comunidade espera dos pais ( que podem ser mulheres) que indiquem estratégias práticas, logística e ação. Quando os pais se levantam pra responder a essas perguntas, eles também dão a sua opinião sobre que ações serão necessárias e quanto elas vão custar. A esses oradores é dada a responsabilidade de sempre lembrar às pessoas que dessas ações advirão consequências.
 "Jovens" refere-se àqueles que, em seu imenso potencial de energia criativa, anseiam por mudanças que trarão um futuro melhor. Eles são os visionários da nossa comunidade - as pessoas criativas, os artistas, pensadores e realizadores. Precisamos estar sempre abrindo espaço para o novo, porque precisamos ser criativos quando topamos com algo que não sabemos como resolver ou que nunca antes tivemos que enfrentar. A responsabilidade dos jovens é aplicar seu talento criativo e artístico à busca de inovações, novas abordagens e novos modos de ver as coisas.

O en'owkin não quer que as reuniões sigam um protocolo rígido. É imperativo, no entanto, que cada pessoa exerça o papel que lhe é naturalmente mais apropriado. Os oradores costumam identificar a função que assumiram dizendo, por exemplo, "Eu estou falando como mãe", antes de esboçarem a perspectiva que, no seu entendimento,  as mães estão sendo solicitadas a contribuir. Cada função é considerada indispensável para a comunidade. As regras explícitas e não explícitas desse processo desafia cada pessoa a incluir de maneira criativa em seu próprio raciocínio os interesses de todas as outras.
 O objetivo do processo não é as pessoas persuadirem a comunidade de que elas estão certas, como ocorre num debate. Mas fazer com que cada indivíduo entenda de maneira mais clara possível as razões por que as opiniões dos outros são contrárias as suas.
Como esse processo não exige a concordância de todos - pois isso raramente ocorre -, o resultado é cada um ser totalmente informado durante o processo sobre o que vai acontecer e como cada pessoa vai contribuir. A ação finalmente escolhida será a melhor possível para a comunidade, levando-se a consideração tanto as suas necessidades sociais concretas a curto prazo quanto as necessidades psicológicas e espirituais a longo prazo. Os anciões descrevem esse processo como "o melhor da mente grupal". A palavra que eles usam significa algo como "a nossa completude".

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